A pandemia da Covid-19 evidenciou a importância da escola como espaço essencial para crianças e adolescentes, não só para o desenvolvimento da educação formal, mas como estratégia comunitária de socialização, saúde e proteção social. Estar matriculado e ir para a escola permite que uma rede de direitos fundamentais sejam garantidos e reforçados, especialmente para aqueles em situação de maior vulnerabilidade, como meninas negras, crianças e adolescentes de baixa renda, com baixos níveis de acesso a direitos sociais e crianças e adolescentes com deficiência, por meio da educação inclusiva.
Assim, falar sobre educação, saúde, proteção contra violência e assistência social no Brasil implica falar sobre a escola e o fortalecimento dessa instituição e de seus profissionais. Causa grande estranhamento, portanto, que a única prioridade do atual governo brasileiro e de alguns parlamentares para a educação neste momento seja o ensino domiciliar, um tema que já foi tratado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do recurso extraordinário 888.815, que estabeleceu a tese de repercussão geral segundo a qual não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira.
Contrariando o Supremo e a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (Art. 22, XXIV, da Constituição Federal), um movimento inconstitucional se iniciou para a regulamentação da prática pelo Ministério da Educação e por leis estaduais ou municipais, como no Distrito Federal, nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo; e nos municípios de Vitória (ES), Cascavel (PR), Sorocaba (SP), por exemplo.
Como natural consequência, a constitucionalidade dessas leis infraconstitucionais, quando não acertadamente vetadas pelos governadores como no caso do Rio Grande do Sul, tem sido questionada nos Tribunais estaduais, é o exemplo da ADI 0035496-33.2019.8.08.0000, do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, que declarou inconstitucional a legislação sobre o tema no município de Vitória e da ADI nº 0752639-84.2020.8.07.0000 que tramita no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, à qual o Instituto Alana e a Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down requereram ingresso como amicus curiae.
Espera-se que esta patente incompatibilidade entre o ensino domiciliar e a prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes seja devidamente reconhecida pelos Tribunais, impedindo que o direito da criança à escola seja ameaçado e para que prevaleçam os deveres constitucionais estabelecido no Artigo 227, e o modelo educacional estabelecido nos Artigos 205 e 206, da Constituição Federal e no Artigo 1º, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
A moldura constitucional é categórica ao definir que o Estado e a família devem atuar em colaboração entre si. Neste sentido, não há preponderância do papel de uma instituição ou de outra, mas sim complementaridade com a finalidade de garantir, em primeiro lugar, o melhor interesse da criança, mesmo que em contraposição à vontade individual de pais, mães ou responsáveis. O poder familiar é sempre limitado pelo melhor interesse da criança, pois crianças não são objetos das famílias, mas sim sujeitos de direitos fundamentais, como o direito de convivência comunitária e o direito à matrícula escolar em instituição regular de ensino.
A educação escolar é única e insubstituível no cumprimento de padrões mínimos de qualidade e princípios do ensino presentes no Artigo 206 da Constituição Federal. Para garantir a educação de qualidade a que crianças e adolescente têm direito, é preciso do espaço de interação, convivência e construção relacional do saber (com os pares e com adultos com relações diversas da parental), de um currículo estruturado, de profissionais com formação adequada, de materiais didáticos adequados e de espaços organizados com finalidade pedagógica, que só as escolas, em toda sua diversidade de formas de organização e possibilidades, podem garantir.
A escola também é imprescindível como parte do Sistema de Garantia dos Direitos de Crianças e Adolescentes e integrante ativa da rede de proteção. Em conjunto a outros órgãos e políticas públicas, a escola possui um papel protetivo e preventivo fundamental contra violência física, psicológica e/ou sexual, reconhecendo e encaminhando eventuais casos de violações. A não obrigatoriedade de frequência à escola inviabiliza a identificação e o encaminhamento de casos, além de ampliar as possibilidades de violência doméstica e sexual. Nesse sentido, de acordo com o Disque 100, em 2019, das 17.029 denúncias de violência sexual registradas contra crianças e adolescentes, 52% ocorreram na casa da vítima e 40% delas foram cometidas pelo pai ou padrasto1. Ainda, o afastamento da sala de aula pode estimular a evasão escolar e o trabalho infantil, considerando as desigualdades sociais: de acordo com a Pnad Contínua 2019, o principal motivo da evasão escolar é a necessidade de trabalhar, contemplando um total de 39,1% dos casos2.
Ademais, em se tratando de uma prerrogativa excludente, o ensino domiciliar coloca novamente em xeque a educação inclusiva que prevê como um direito das crianças e adolescentes com deficiência, os quais historicamente estiveram entre os grupos privados da garantia do direito à educação, a frequência às escolas regulares. A educação escolar comum é fundamental para aumentar o desempenho acadêmico e sócio emocional de todos os estudantes, além de solidificar uma cultura inclusiva e de respeito à diversidade na sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania.
Relevante citar as experiências de homeschooling em outros países, como os Estados Unidos, que longe de serem exemplos, escondem violências várias, nos quais adultos que passaram pelo ensino domiciliar hoje se autodenominam de sobreviventes. Sobrevieram à falta de proteção contra violações graves, como o confinamento predominante de meninas, as quais deveriam ser educadas em casa apenas para realização de tarefas domésticas, conforme aponta Elizabeth Bartholet, professora da Harvard Law School e diretora do Child Advocacy Program (CAP)3, em diversos artigos sobre o homeschooling nos Estados Unidos.
A partir dessas evidências, retomemos a discussão inicial deste artigo. Os projetos de lei e os ilegais incentivos de ensino domiciliar do atual governo em discussão neste momento além de inconstitucionais confrontam o nosso papel, enquanto sociedade, e o dever da família e do estado de efetivarem a educação escolar, fortalecendo a escola como espaço diverso e insubstituível para o desenvolvimento integral de todas as crianças e adolescentes.
*Letícia Carvalho é assistente jurídica do Instituto Alana. Graduada pela Faculdade de Direito da USP, onde coordena a Clínica de Direitos da Criança e do Adolescente.
**Pedro Hartung é advogado e Diretor de Política e Direitos da Criança do Instituto Alana. Doutor em Direito do Estado pela USP e doutorado sanduíche na Harvard Law School.
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1 BRASIL. Disque Direitos Humanos: Balanço anual do Disque 100 – ano 2019. Acesso em: 21/05/2021.
2 IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. Educação. 2019. Disponível aqui. Acesso em 08/07/2021.
3 BARTHOLET, Elizabeth. Homeschooling: Parent Rights Absolutism vs. Child Rights to Education & Protection.
Arizona Law Review. Volume 62, Issue 1 p. 9. Disponível aqui. Acesso em: 21/05/2021.
Fonte: Migalhas
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